Emepetrês

Estamos sitiados. O mundo contemporâneo se deixou dominar pelos barramentos de cobre e os componentes de silício. Obviamente, isso veio a acontecer simplesmente por ninguém perceber que tecnologia é uma chaga. Uma gangrena no tecido da sociedade moderna. Pois, assim como toda gangrena que se preze, a tecnologia não tende a se retrair, e sim a se expandir sem fronteiras onde quer que se instale, conquistando novos territórios, e inevitavelmente incapacitando o intelecto das gerações vindouras, tal qual a doença mata o corpo aos poucos.

Há decadas atrás, as pessoas tinham uma vida livre de redes sociais na internet, que mais servem pra terminar namoros e instaurar inconfiança do que qualquer outra coisa. Os casais criam perfis conjuntos, a namorada temendo o que a menina com foto de biquíni pode conversar em segredo com o namorado, e ele sem temer absolutamente nada. Preferia o perfil separado mesmo, por razões óbvias inerentes ao caráter masculino, mas isso é assunto pra outra oportunidade.

A cozinha da dona de casa sempre foi composta de fogão, panelas, compaixão e amor (leia Sazon). Pra que mais? Ninguém sabe pra que. Mas isso não impede o surgimento de frigideiras high-tech. Tal qual um microondas achatado e raivoso, a infeliz tem um display que informa a temperatura, pra quem quiser saber. Dica: não sou eu. Se os meus bacons foram fritos a 80, 90, 100 graus celsius, não importa!, a pergunta certa a fazer é se tem farinha ou queijo ralado pra colocar em cima.

Mas há avanços que eu admiro. Os aparelhos portáteis de reprodução de música digital (quê?) atuais, por exemplo, superam os seus antepassados, o walkman e o discman, em diversos aspectos. Porém, é uma pena estarem fadados ao mesmo destino cruel dos telefones celulares. Você não vai ter facilidades em encontrar um desses aparelhos simples, que façam uma função básica e vital a um preço justo. Na verdade, você não vai ter facilidade em encontrar um desses, ponto. Esses dias eu me vi sem um mp3 (ah, por que não disse antes?), que me distrai no dia-a-dia, nas tarefas repetitivas “lá-e-cá” como faculdade, academia, etc. Precisava de outro. Mas não queria um aparelho mp780², que não apenas reproduz músicas e videos, como também captura imagens em sequência, manda e recebe mensagens multimídia, tem som em viva-voz, mede taxa de glicose no sangue, prevê o tempo com base na leitura da umidade do local, lê impressões digitais e envia para o banco de dados do Pentágono, e, se no caso de alguém estar achando pouco, tem botõeszinhos em baixo relevo que são um amor. Não. Eu só queria um mp3 que tocasse música.

Engajei em uma conversação sobre o tema com a minha mãe e me surpreendi:

– Filho, o pessoal lá do trabalho disse que esses emepetrês estão saindo de linha. Você só encontra de segunda mão agora.

– Sério?

– Séríssimo.

– Ah tudo bem então… Vou ter que comprar de segunda mão.

Abre parênteses. Jamais expresse uma opinião contrária à da sua mãe com tamanha convicção. Você pode ter a idade que for, que em poucos segundos você será um idoso desmoralizado. Fecha parênteses.

– Segunda mão NÃO. A loja tá aí pra isso. Compra um desses emepequatro.

– Mãe, eu não gosto desses negócios.

– Como não gosta? Eu vi um que era tão bonitinho, uns botões fofos, tinha rosa choque, prata fosco e azul azul, daqueles bem azuis mesmo.

– Prefiro preto. Ah, falar nisso, acho que o João tava vendendo o dele, cobrava uns cinquenta e…

– Já falei que de segunda mão não, Raí! Compra um novo! Tem um monte de traquitanas do jeito que vocês jovenszinhos gostam.

– O problema é que eu não uso essas funções e tenho que pagar mais por elas.

– E daí? Paga e começa a usar.

Foi nesse ponto que eu me calei em derrota. A curva de crescimento da tecnologia se pôs de tal maneira que inverteu a relação mãe-filho vigente na minha residência: eu era o adulto que dispensava as futilidades de um aparelho novo em troca do essencial e barato, e a minha mãe era o jovem que se adapta rapidamente ao que o mercado high-tech dispõe. Tenho medo da permuta que pode ser feita entre eu e o meu pai. Se um dia eu acordar com a mania de dizer “por entendeu” ao fim de cada frase, eu mato o Bill Gates. Juro que mato.

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